É preciso rever os conceitos
existenciais com os quais moldamos a realidade conforme nossas
conveniências.
Nas fantasias, tudo é conveniente, possível,
belo e celestial: um céu nos aguarda, somos filhos de divindades,
seres superiores, destinados a ocupar o centro da criação. Nelas,
tudo existe para nos servir. Entretanto, nenhum fragmento ou fagulha
divina em nossos corpos nos livra da voraz fome que também habita um
animal selvagem e predador. Esse contraste revela a fragilidade da
afirmação de que somos especiais. Possuímos maior inteligência,
sim — mas isso não valida a presunção de superioridade. Basta
maturidade para admitir verdades: nossos corpos são atacados por
bactérias e vírus, e a natureza não poupa ninguém. Vulcões,
tempestades e fenômenos naturais não reconhecem convenções,
crenças ou mitos.
Para os hipócritas, tudo está perfeito como está: a cobra engole o sapo vivo porque “uma divindade os fez assim”; o crocodilo despedaça a zebra porque “uma divindade os fez assim”. Há inúmeros exemplos que evidenciam a contradição entre o discurso humano de amor e fraternidade e a brutalidade que permeia a vida. Se a criação fosse perfeita, como aprendemos a crer desde o princípio, deveríamos abandonar antibióticos, cesarianas e anestesias. Afinal, diriam alguns: “quem somos nós para contestar a criação?”. Mas eu sempre lembro: se questionar é pecado, de que vale o saber?
É urgente rever os conceitos com os quais florimos a existência. Desde os primeiros sinais de discernimento, envolvemo-nos em um véu de interpretações criadas para dar sentido ao caos da realidade. Moldamos nossa percepção do mundo conforme nossas conveniências e, muitas vezes, nos refugiamos em fantasias reconfortantes. Nessas ilusões, tudo é possível: acreditamos que o céu nos aguarda, que somos herdeiros de divindades, que nosso destino é grandioso e separado da brutalidade natural.
Mas, ao observar a essência crua da existência, percebemos que nenhuma centelha divina nos isenta das forças que regem todas as formas de vida. Somos predadores e presas, organismos vulneráveis, sujeitos à mesma implacabilidade que conduz o restante da natureza. Sim, desenvolvemos inteligência elevada e capacidade de abstração. Mas isso não nos concede superioridade absoluta. Nossa consciência não nos imuniza contra o tempo, a doença ou o caos natural. Envelhecemos, adoecemos, sucumbimos.
A ideia de superioridade humana, examinada racionalmente, revela-se um mito cuidadosamente construído para satisfazer a necessidade de controle e sentido em um universo indiferente. Criamos sociedades, tecnologias e narrativas que nos elevam acima das demais espécies, mas, no fim, continuamos sendo frágeis — parte da mesma corrente vital que molda o destino de todas as criaturas.
Talvez o
verdadeiro poder não esteja na crença ilusória de superioridade,
mas no reconhecimento de nossa conexão intrínseca com tudo que
existe. Aceitar que somos parte do fluxo ininterrupto da vida, sem
privilégios místicos, nos aproxima da profundidade da experiência
existencial.
Na admissão dessa verdade, compreendemos não haver fragilidade — há, sim, a grandeza genuína da interação
entre consciência, corpo e mundo.
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